segunda-feira, 15 de junho de 2015

Monólogo do Clausewistz e Outras

Tempo de Paz 

Eu não vivi, colecionei lembranças.

"Ai de mim. Ai, pobre de mim!
Aqui estou, ó Deus...para entender que crime cometi contra Vós.
Mas, se nasci, eu já entendo o crime que cometi.
Aí está motivo suficiente para vossa justiça...Vosso rigor, porque o crime maior
do homem é ter nascido.
Para apurar meus cuidados...só queria saber que outros crimes cometi contra
Vós...além do crime de nascer.
Não nasceram outros também?
Pois, se os outros nasceram, que privilégios tiveram...que eu jamais gozei?

Nasce uma ave e, embelezada por seus ricos enfeites...não passa de flor de plumas,
ramalhete alado...quando veloz cortando salões aéreos,
recusa piedade ao ninho...que abandona em paz.
E eu, tendo mais instinto...tenho menos liberdade?

Nasce uma fera... com a pele respingada de belas manchas, que lembram estrelas.
Logo, atrevida e feroz, a necessidade humana...lhe ensina a crueldade, monstro de seu labirinto.
E eu, tendo mais alma, tenho menos liberdade?

Nasce um peixe, aborto de ovas e Iodo...e, feito um barco de escamas
sobre as ondas, ele gira...gira por toda parte, exibindo a imensa habilidade que lhe dá...
um coração frio; e eu, tendo mais escolha, tenho menos liberdade?




Nasce um riacho, serpente prateada, que dentre flores...
surge de repente e de repente, entre flores se esconde...onde músico celebra a piedade
das flores que lhe dão um campo...aberto à sua fuga. E eu, tendo mais
vida, tenho menos liberdade?

Assim...
Assim chegando a esta paixão, um vulcão...qual o Etna quisera
arrancar do peito...pedaços do coração.
Que lei, justiça ou razão...pôde recusar aos homens privilégio
tão suave, exceção tão única...que Deus deu a um cristal, a um peixe...a uma fera e a uma ave?"






0 senhor acha que é melhor do que eu.
Não. Eu sei que eu sou pior que o senhor.
Eu escapei.
Eu estou vivo.
E todos estão mortos.
Meus amigos, meus pais, meu país... minha mulher...
Se eu estou vivo, é porque eu era pior que eles.1
Eu sou pior que o senhor, eu tenho certeza.

Eu sei que ninguém quer saber de mim.
Eu fiz o que eles mandaram...e eles querem esquecer que
mandaram fazer o que eu fiz.
Eu não sabia o que fazer no meio daquela confusão.
Eu era um ator!
Não sabia carregar um fuzil, não sabia curar uma ferida... 0 melhores era ficar em casa.
Até o dia em que foram me buscar.
Não tive medo, não. Achei outra vez que, de alguma maneira... eu estava vivendo.
Vivendo enquanto eu presenciava todo o horror.

Por que era a única coisa que eu podia fazer: Estar presente.   
E guardar na memória.

Eu achava que eu não podia contar minhas lembranças para o senhor.
Mas agora eu acho que não adianta.

Eu já desisti de tanta coisa.
Já desisti do meu país.
Já desisti da minha família.
Já desisti da minha profissão.
Já desisti do teatro.


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