Nasci assim, vou morrer assim.
Umas das provas irrefutáveis que estou ficando que estou
preste a virar um fóssil é que assisti à novela Gabriela em 1975 e lembro até
hoje da famosa cena que Sonia Braga se arrasta feito uma lagartixa por cima do
telhado de Ilhéus, para assombro do seu Nacib. Ouro dia, numa dessas
retrospectivas tipo vale a pena ver de novo, reprisaram a cena, enquanto se
ouvia a trilha sonora que virou hit: “ Eu nasci assim, eu cresci assim, eu vivi
assim, vou ser sempre assim, Gabriééééla”.
Salve Dorival Caymmi, autor da letra, mas cá entre nós,
hoje Gabriela seria forte candidata a alguma sessões de psicanálise, porque só
pode ser teimosa crônica essa mania de nasci assim, crescer assim, viver assim
e, mais grave, ser assim. Por mas que “assim” seja bom. É muito assim pra pouco
assado.
Tenho uma amiga que é a última a sair dos encontros da
nossa turma. Invariavelmente, última. No entanto, dias atrás, nós reunimos e
não eram nem 21h quando ela pegou a sua bolsa e se despediu. Silêncio na sala.
Está se sentindo mal? Não. Alguma coisa que dissemos que ofendeu? Não. Vai se
encontrar com alguém? Não. Ela apenas sentiu vontade de voltar cedo pra casa em
vez de, como de hábito, fica para apagar a luz. Havia nascido assim, vivido
assim, mas não precisava ser sempre assim.
Depois que ela se foi, ficamos especulando sobre o que a
teria feito ir embora, sem aceitarmos a explicação trivial que ela deu: vontade.
Como vontade? Desde quando alguém faz algo diferente por simples vontade? Muito
suspeito.
É justamente para
não alimentar desconfianças que tanta
gente se algema aos seus preconceitos, aos gostos que cultiva há vinte anos, às
manias executadas no automático e amores que nem lhes satisfazem mais, tudo
para que os outros não questionem sua integridade, já que se estabeleceu que quem
muda é frívolo.
Se é isso mesmo, salvem o frívolos. Só não muda quem não
relaciona com o mundo, não passou por nenhuma experiência amorosa, por nenhuma frustração.
Só não muda quem não consegue racionalizar sobre o que acontece a
sua volta, não se interessa pela condição humana, não é curioso a respeito de
si mesmo, não se permiti ser atingido pela arte e pelo pensamento filosófico,
em suma, só não mudo quem está morto.
A vida não recompensa os amadores. No máximo, lhes dá uma
vida tranquila, e isso nem sempre é uma graça divina. Gabriela era um
personagem de ficção, e Gaymmi, um poeta enaltecendo a pureza humana, que
merece mesmo ser enaltecida em prosa e verso. Mas a pureza não precisa se
defender o tempo inteiro contra a mudança. Pode-se migrar da pureza para o
experimentalismo, sem perdas.
Minha amiga, naquela noite, dormiu cedo como há séculos
não fazia, e eu, que costumo cabecear quando termina a novela, fui última a
sair, fiquei para apagar a luz. E ambas
continuamos íntegras como sempre fomos.
Retirado do livro Feliz por nada de Martha Medeiros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário